Barulho de chuva no telhado, o som da água caindo na calçada, verdadeiras canções de ninar que embalam o sono de muita gente. Chuva que molha o solo, que faz com que plantas cresçam, que lavouras produzam, que em tempos de energia mais cara enchem reservatórios, chuva que permite o abastecimento de água e, que também, nos dão o luxo, de passar um dia preguiçoso no final de semana, dentro de casa, curtindo a família, assistindo um bom filme sob o calor dos fogões à lenha, dos aquecedores ou das lareiras, curtindo o sabor das pipocas ou dos pinhões.
Mas assim como essa mesma chuva pode representar tranquilidade e momentos agradáveis, ela também pode assumir uma aparência bem desagradável, quando vem em excesso: Solo encharcado, que parece ter esgotado sua capacidade de absorção, lama em grande quantidade, plantas morrendo por excesso de água, chuva incessante que tanto dificulta e torna desconfortável o sair de casa, quanto confere perigo ao dirigir pelas ruas.
Aspectos ruins que podem ser potencializados quando a chuva “não para de cair”, à exemplo dos dias de chuva “interminável” que vivemos até a pouco.
Águas, que como reflexo de tudo que é natural, não respeita nossas convenções, invade ruas, praças e casas, causa danos, trás preocupação, obriga famílias a se retirarem de suas casas, exige trabalho coletivo, movimenta voluntários, trazendo à tona o sempre presente, mas as vezes um tanto esquecido ou subestimado, problema das enchentes.
Enchentes que marcaram nossa história, como a ocorrida em outubro de 1888, curiosamente após um longo período de seca, no qual o rio Negro atingiu nível até então inédito; mas superado poucos anos depois pela grande enchente de julho de 1891, contada por muitos como a maior de todas as enchentes, onde o leito do rio Negro atingiu a altura em que seria instalada anos depois a ponte metálica. Ou em julho de 1983, onde Riomafra viveu a maior enchente registrada de sua história, com o rio Negro atingindo 14,57 metros acima de seu nível normal; ou então 1992, quando as águas chegaram a 14,42 metros, deixando cerca de oito mil desabrigados e, levando a adoção de medidas de racionamento de alimentos e remédios, além de sérios problemas de abastecimento de água potável e inúmeros prejuízos, contabilizados à época em cerca de cinco bilhões de cruzeiros.
Fenômenos e desdobramentos presentes na memória da população, mas não de toda ela, seja pelo natural esquecimento de alguns devido ao tempo (afinal são quase 22 anos desde a última grande enchente), seja pelo simples fato de não ser contemporânea às gerações mais novas, que não viram ou pouco se recordam daquela época. Mas, se já é tradicionalmente difícil ver o sol nos nossos outonos e invernos em Riomafra, a chuva forte e constante da última semana além de fazer com que tivéssemos a sensação de viver em uma penumbra interminável, trouxe consigo a rápida subidas das águas de nossos rios e o fantasma das grandes enchentes.
Quem não é atingido pelas águas, quem não tem seu caminho de todo dia transformado num braço de rio, quem não trabalha diretamente no auxílio aos atingidos, quem não tem suas finanças prejudicadas, ou tem em mente apenas as pequenas enchentes que acontecem praticamente todos os anos, talvez veja, mas tenha dificuldades de enxergar a real amplitude que uma grande enchente pode tomar.
Como em 1992, onde trechos de estradas, ruas e até rodovias foram cobertos pela água, dificultando, tornando arriscado e até imobilizando o trânsito, alterando o volume de tráfego de outras vias, sobrecarregando-as, conferindo lentidão e aumentando o número de acidentes. Algo que a baixa das águas não é garantia de retorno à situação normal, onde o entulho, o calçamento danificado, destruído, buracos criados, as valas cavadas pela correnteza e as pequenas pontes que foram simplesmente levadas pelas águas, ainda precisam ser reparadas para uma verdadeira normalização da vida cotidiana.
Casas sendo ameaçadas e invadidas pela água, famílias deixando seus lares, levando os pertences, móveis e eletros que conseguem levar, graças ao auxílio da Defesa Civil, do Exército ou de voluntários, sendo alojados na casa de parentes, em ginásios de esporte, escolas, passando a depender ainda mais da ajuda de outros, de doações de alimentos, de roupas, agasalhos, colchões e até água.
Água que juntamente da energia elétrica chegaram a ter seu funcionamento interrompido em determinados locais e momentos, por questões de segurança ou dificuldades técnicas, piorando a já precária situação dos desabrigados e também dos demais habitantes de Riomafra. Ao que se somava ainda, a falta de contato, de informações entre familiares (internet ou celular não eram nada comuns naquela ocasião), a existência de desaparecidos, de mortos, vítimas da velocidade da subida das águas, das traiçoeiras surpresas trazidas pelos rios e também da imprudência de alguns.
Um caos com cenas difíceis de imaginar normalmente, como a água cobrindo a cabeceira rionegrense da ponte Rodrigo Ajace, que obrigava a quem precisasse transitar entre as cidades a utilizar botes para chegar até a parte mais elevada da ponte; a correnteza do rio Negro raspando o assoalho de madeira da ponte metálica; e casas de madeira sendo arrastadas pelo rio e despedaçadas pelo impacto contra os pilares da ponte dos “peixinhos”. E após tudo, com a baixa do rio, a visão real da destruição causada pela enchente, a desolação de quem perdeu seus bens, de quem teve a casa arrasada, da sujeira e dos estragos parciais.
Mas se algo em meio a tudo isso pôde ser considerado realmente “bom”, são dignas de lembrança e orgulho as grandes demonstrações de solidariedade, as doações, o trabalho, a dedicação de tempo, de materiais, de veículos, de dinheiro, de carinho, de esperança e tantas outras coisas, dos voluntários, de pessoas repletas de boa vontade, modelos de um trabalho totalmente desinteressado, uma massa que, de certa forma “anônima”, não só auxiliou aqueles que precisavam, como representou elemento fundamental de todo o socorro prestado.
Dessa forma, não somente as coisas boas do passado precisam ser lembradas, as ruins também devem fazer parte das nossas lembranças, pois mesmo representando situações negativas, esses maus momentos servem de lição e aprendizado para o presente.
Um presente repleto de individualismos e maus exemplos, mas que ainda conta com ações de pessoas, que como aqueles heróis (voluntários) anônimos de 1992, dedicam-se ao auxílio a quem necessita e, sem almejar qualquer tipo de recompensa ou reconhecimento, se revestem como referência para a sociedade.
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